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«A Anomalia» de Hervé Le Tellier

«A Anomalia» de Hervé Le Tellier

A Anomalia, de Hervé le Tellier, foi o livro vencedor do prémio Goncourt de 2020. O sucesso estrondoso da obra dever-se-á não apenas ao momento, que predispõe os leitores para o inesperado, mas também à exímia construção da obra, que alia as características do thriller às da mais altíssima literatura, tanto em termos de qualidade da prosa quanto de manipulação de linguagem de forma a provocar um efeito. A premissa da obra é um encanto. Onze pessoas – serão pessoas? – aterram em Nova Iorque num voo da Air France, em março. Três meses depois, o mesmo avião e as mesmas pessoas – serão pessoas? – voltam a aterrar. Em junho, os passageiros julgam que estão em março, e quem aterrou em março seguiu com a sua vida. Quando o avião aterra, as forças policiais detêm os passageiros e levam-nos para um hangar militar, secreto e vigiado, onde se confrontam com eles mesmos. Confrontados com os duplos, quem seguiu com a vida tem a vantagem de ter vivido mais e de poder prever o outro.

 

 

 

 

Antes de irmos avante, convém dizer que o conjunto de personagens é formidável. A mão de Le Tellier é de uma segurança ímpar, permitindo-lhe criar ações, situações e personagens díspares, adaptando-se a linguagem a cada situação, com requintados toques de humor em todo o lado. Por exemplo, Blake, um honrado pai de família que é, afinal um assassino a soldo. Ou Slimboy, uma popstar cansado de viver uma mentira. Ou Joanna, advogada reconhecida cujos erros foram apanhados. Ou Victor Miesel, um escritor-fantasma que de repente é um autor de culto. Ou André, que tenta agarrar uma mulher que não o quer. Ou Lucie, cansada pela paixão de André. Para cada situação, Le Tellier foi um escritor novo, e as personagens fazem-se em diferentes estilos estéticos. Quando Blake está no centro, a prosa é negra e rápida. Quando se foca em André e Lucie, subjaz um romantismo dorido e o olhar externo – e portanto sobranceiro – de quem vê uma paixão que, ao invés de arder, está condenada à fogueira. Além do desconforto da situação, que advém da confusão, existe ainda o do confronto com o duplo, o que permitiu ao autor paralelizar resultados, pesar opções, ver caminhos possíveis, encarar a vida que mostra sem o fatalismo da estrada unilateral e a direito.

 

 

Os contornos do romance dirigem-se, então, para o centro das teorias sobre inteligência artificial e da hipótese de vida como simulação. A agilidade da leitura é a de um thriller, a exigência com a prosa é a de um grande autor, e ainda por cima de um que enfrenta a vida com tudo o que ela tem e é, não temendo as referências pop, não temendo pôr no centro de um grande romance o que parece não pertencer aos eruditos, dando-nos um extraordinário exemplo de ficção científica contemporânea. A hipótese da vida como coisa planeada por uma entidade acima, em termos de capacidade e inteligência, cria desnorteamento e medo, mas o que interessa aqui é a condição humana perante a situação, a forma como várias cabeças reagem e procuram caminhos. Afinal, que interessa se a vida é uma simulação? E, com um conjunto de personagens tão diferentes, o autor francês permitiu-se ir além de um exemplo único, explorando vários potenciais de ação, várias formas de se enfrentar os duplos. Como os pares são o mesmo, o vínculo entre eles é o do estranhamento e o da identificação em simultâneo. A parte mais forte do romance é aquilo que três meses a mais de experiência são capazes de acrescentar à perspetiva de alguém. Quantos erros se cometeram, quantas proteções falharam, quantas imprudências venceram? Quantas vezes se cedeu a impulso que veio a estragar tudo? Será fácil pensar em refazer um erro. Aqui, é possível saber que o erro será feito, indicar o caminho para evitá-lo. Em três meses, várias das personagens comprometeram o futuro. Na mão, têm a possibilidade de curá-lo, e, acima disso, de se encontrarem perante cenários diferentes da mesma vida, como um jogo. Analisando o caminho, ainda nos perguntamos se o evitável seria, afinal, inevitável. Em termos técnicos, haverá que elogiar a eficácia da narrativa, sempre de mão dada à literariedade da prosa. O engenho é ao detalhe, a intensidade não esmorece. A inteligência de Le Tellier fica comprovada a ferro, o seu talento também.

 

Texto de Ana Bárbara Pedrosa

 Artigo retirado do Observador em https://observador.pt/2021/05/30/a-possibilidade-de-saber-que-o-erro-sera-feito/

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